Para a Revista COMUM, das Faculdades Hélio Alonso (Facha)
Já passou bastante da hora, mas as Forças Armadas bem que poderiam se valer do ensejo dos 50 anos do golpe para pedir desculpas à Nação pela funesta intervenção de 1964 na ordem então vigente, que seguia as normas constitucionais, tendo à frente um presidente da República, João Goulart, que contava com boa aceitação da opinião pública - ao contrário do que o Ibope foi constrangido pelos golpistas a divulgar - e tinha como objetivo prioritário as "reformas de base", estas mesmas que se tenta concluir desde o reinício da caminhada democrática.
O que houve, então, para justificar a brutal interrupção de uma caminhada, que era, afinal, a percorrida, com maior ou menor velocidade, em todos os processos de construção e consolidação das democracias ? Com a experiência de quem viveu aqueles históricos dias no início da sua também cinquentenária carreira jornalística, não tenho dúvida de que dois fatores foram decisivos e determinantes no sinistro acontecimento: no plano interno, os interesses que se sentiam ameaçados pelas reformas, como, por exemplo, o latifúndio improdutivo, assustado com a emergência, em Pernambuco, do sindicalismo rural das Ligas Camponesas, de Francisco Julião, que logo se estenderia a outros estados; e, no externo, os temores paranoicos do governo norte-americano de que a Revolução Cubana, vitoriosa no primeiro dia de 1959, se reproduzisse em cadeia em outros países do continente.
Um dos golpes da era da Guerra Fria
É preciso acrescentar, sobretudo para os mais jovens, que tudo isso ocorreu num Brasil em que a distribuição de renda era ainda mais injusta do que a atual, que continua sendo, apesar do considerável aumento da classe média nos governos do Lula, das mais opressivas, e com uma legislação que, sem o voto dos analfabetos, restringia o eleitorado a bem menos do que a metade da população do país. Conjuntura a que não pode faltar menção aos ressentimentos acumulados pelas correntes políticas mais conservadoras e reacionárias, com as derrotas sofridas em três sucessivas eleições presidenciais, e pelas próprias Forças Armadas, que, não fosse a comoção nacional provocada pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, teriam chegado ao poder dez anos antes, em 1954. Para agravar o clima interno, o cenário mundial era o da Guerra Fria, em que os supremos vilões, conforme ditame dos EUA, eram os comunistas, os marxistas e os socialistas, em geral.
Para se ter ideia de como o mundo mudou desde então, o Papa Francisco nem se sentiu abalado, recentemente, quando foi chamado de marxista, por ter qualificado o capitalismo como "uma nova tirania". E os EUA, em sua auto-atribuída missão de polícia universal, já substituíram "comunistas" por "terroristas" para justificar, por exemplo, operações como a de clonagem das ligações celulares da nossa presidenta. Ou seja, violaram e continuam violando a nossa soberania nacional para o nosso bem, para nos livrar, a Dilma e nós todos, do mal do terrorismo.
Mas, foi no panorama de 1964, que procurei esboçar, brevemente, acima, com os comunistas ameaçando devorar as criancinhas pelo mundo afora, que as nossas Forças Armadas fizeram a trágica opção pelo golpe, não sem expressiva resistência em suas próprias hostes, como demonstra, com a já costumeira competência, o cineasta Sílvio Tendler, no recém-lançado documentário "Militares da democracia". Nos demais países do Cone Sul, Argentina, Chile e Uruguai, também arrastados ao golpismo militar pela Guerra Fria e pelo incentivo direto dos EUA, no entanto, as autocríticas das forças armadas já se concretizaram na prática, e os militares envolvidos em crimes como sequestro, tortura e assassinato já estão cumprindo as penas a que foram condenados.
O lanterna na copa dos avanços democráticos
O que me indigna, e a um crescente número de compatriotas, é a vocação do nosso país a ser sempre o último nos avanços democráticos e humanistas, isto é, pentacampeão mundial no futebol, mas lanterna, no Ocidente, na abolição do escravagismo de três séculos, cujas sequelas, previstas por Joaquim Nabuco e pelo general Pery Constant Bevilaqua (que as anteviu no prefácio à primeira edição do meu livro O poder jovem), tão intensamente se manifestaram ainda há poucas semanas, no racismo denunciado tanto pelo nosso noticiário policial quanto pelo futebolístico.
Crime não se deve acobertar nem de parente. E a jovem oficialidade de hoje, que não era sequer nascida em 1964, nada tem a ver com os crimes, inclusive hediondos, cometidos nos quartéis ou fora deles, por colegas que nem conheceu, como o coronel que relatou ao Globo,com orgulho e requintes de gastrônomo, os segredos de se obter o eterno desaparecimento de um corpo humano. A fórmula, com minúcias de receita de brigadeiro, saiu nas páginas do jornal que fez, ano passado, a autocrítica que as Forças Armadas ainda estão devendo. Por que esta demora ? Será que elas se sentem à prova de erros ou falhas, mesmo nestes tempos em que até o dogma da infalibilidade papal já saiu de cena ? Ou temem que o reconhecimento de fatos já de conhecimento público possa empanar a visão da sua contribuição positiva em nossa história: para a integração nacional, por exemplo, com o Correio Aéreo Nacional (CAN), ou no combate ao nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, com a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália?
Se é este o caso, saibam os militares que a autocrítica, ao invés de desmerecê-los, realçaria e se somaria ao que fizeram de bom, além de libertá-los da mais do que constrangedora posição atual. O mais provável, para mim, é que esta posição resulte de uma versão fascista e até mafiosa de corporativismo, talvez remanescente do Estado Novo, mas ainda muito em voga por aqui, inclusive nas entidades médicas, que, no afã radical de barrar o trabalho de profissionais formados no exterior no programa Mais Médicos, lograram transformar discípulos de Hipócrates em mestres da hipocrisia..
Se é este o caso, saibam os militares que a autocrítica, ao invés de desmerecê-los, realçaria e se somaria ao que fizeram de bom, além de libertá-los da mais do que constrangedora posição atual. O mais provável, para mim, é que esta posição resulte de uma versão fascista e até mafiosa de corporativismo, talvez remanescente do Estado Novo, mas ainda muito em voga por aqui, inclusive nas entidades médicas, que, no afã radical de barrar o trabalho de profissionais formados no exterior no programa Mais Médicos, lograram transformar discípulos de Hipócrates em mestres da hipocrisia..
Neste último 1º de abril, a Comissão Nacional da Verdade recebeu documento assinado pelo ministro da Defesa, Celso Amorim, informando que, a pedido da CNV, as Forças Armadas criaram comissões de sindicância para investigar tortura e mortes em sete instalações militares, durante a ditadura. Entre as quatro do Rio, o Quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército, na Barão de Mesquita, sede do DOI (Destacamento de Operações de Informações) do I Exército, onde passei dolorosa e amarga temporada de três meses, em 1970, depois de preso na Redação do Correio da Manhã. Das lembranças e dos pesadelos, só consegui me livrar escrevendo, já refugiado às margens do Reno, o romance Nas profundas do inferno, lançado na Espanha e premiado na Itália, antes de poderem sair as três edições brasileiras.
Será que este 1º de abril, ao invés da cinquentenária e desastrosa mentira que tanto mal causou ao nosso povo, nos trouxe o prenúncio da tão aguardada autocrítica das Forças Armadas ?
Arthur Poerner, escritor e jornalista
6 comentários:
Meu querido Arthur, BRILHANTE!!!!!
Realmente excelente, escrito com fôlego, alma e técnica. Deu-me uma enorme vontade de encontrá-lo para papear; você vai sair hoje?
Beijão, Eliana
Muito bom. Abs fraternos.
Caro Arthur Poerner, estivemos fora do ar devido a constantes quedas da internet.
Grato pelo envio de mais um dos seus preciosos textos.
Tenha uma nova semana plena de paz e bastante proveitosa.
Abraços
Fernando
Querido Poerner!
Mais uma vez a verdade vem à tona em seu lindo e esclarecedor texto intitulado de "PRENÚNCIO DE AUTOCRITICA", fico feliz e orgulhoso de tê-lo como amigo e um dos poucos remanescentes do momento histórico e cultural que este país já produziu em outrora vergonha nacional.
É de extrema importância esse campo de observação educacional e pedagógico que você apresenta aos nossos jovens, para que atos como este não se repita e passe definitivamente a limpo esta maculada época de triste e dolorosa mentira, pois os ideais humanista de verdadeiros homens não podem se esquecidos e nem tão pouco apagados através do tempo.
Abraços Fraternais!
José Eudes
Arte-Educador, Ator e Diretor Teatral
Estimado Arthur Poerner, fiquei honrado por estabelecer contato pessoal e participar da reunião em que também estava presente, no dia 17, com o ex-ministro da Cultura de Cuba Abel Prieto. Envio o link da sua excelente matéria, que fez sucesso na edição do Vermelho, da entrevista com o Abel Prieto e da minha coluna no Vermelho sobre o mesmo tema.
Meu abraço,
José Reinaldo
Querido Poerner,
muito bom. Parabéns pela sua lucidez de sempre. Isnard.
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