Não é exagero dizer que as copas mundiais de futebol pautam o meu passado, como pontos referenciais que me ajudam a datar vivências de outras esferas. Desde a primeira que vivi, em 1950, a cuja trágica partida final o meu pai achou prudente não me levar com ele, ante a previsão de 200 mil espectadores no Maracanã. De modo que o gol do Ghiggia na vitória uruguaia, aos 36 minutos do segundo tempo, me surpreenderia no meio de uma pelada de rua, de pés descalços, no Bairro de Fátima.
Ainda mais dramática para mim, no entanto, foi a Copa de 1970, que me pegou preso no quartel da PE da Barão de Mesquita. Pouco antes da estreia do Brasil, contra a Tcheco-Eslováquia, fomos - uns 30 prisioneiros, entre os quais também estava o Gabeira - transferidos para o Dops, devidamente algemados e com as cabeleiras podadas. O que equivalia a uma ascensão do inferno ao céu, pois no Dops, naquele momento, não se torturava, e ainda podíamos receber visitas e jornais.
Ali ficavam também os policiais acusados de crimes comuns, e o único que encontramos, sempre só de cuecas, mas de sapatos pretos reluzentes e meias brancas até o joelho, atendia pelo sugestivo nome de Miltom do Pó, que, desde o primeiro encontro, sem esconder a inveja que sentia pelo nosso status de presos políticos, passou a nos cumular de gentilezas. A maior delas foi instalar um aparelho de tevê de última geração na maior das celas coletivas, pois aquela seria a primeira copa televisionada.
Daí a tristeza que acometeu o Miltom do Pó quando, todos já acomodados à espera do apito inicial, percebeu que tínhamos decidido, depois de extenuantes discussões, torcer contra o Brasil, convictos da utilização propagandística que a ditadura faria de uma conquista da Copa. E com inabalável firmeza ideológica nos manteríamos até que o "nosso" novo ponta, Ladislav Petras, ousou não só balançar a rede de Félix, como, ainda, se ajoelhar e fazer o sinal da cruz. Foi demais, um golpe profundo o suficiente para desmontar as estruturas da laboriosa decisão política. Tanto que a nossa kafkiana metamorfose se desfaria ainda no primeiro tempo.
O pior foi ter que ouvir, já plenamente reintegrados à pátria de chuteiras e abraçados ao Miltom do Pó nas comemorações da vitória brasileira por 4 a 1, o diretor do Dops gritar da porta da cela:- Vencemos vocês, seus comunistas de merda !
Foi o único jogo da brilhante campanha do tricampeonato a que pudemos assistir, o que, muitos anos depois, chocaria o Dadá Maravilha e o meu amigo aqui do Leme Jairzinho Furacão, quando lhes contei a história. Logo depois daquela partida, fomos novamente algemados e recambiados às celas da Tijuca, donde só foi possível acompanhar a evolução da gloriosa trajetória pelo clamor das ruas e, vez por outra, pela bendita tagarelice de um cabo-enfermeiro.
Arthur Poerner
2 comentários:
Maravilha! Uma das deliciosas estórias, histórias, que vc viveu.
Beijo
Estimado Poerner,
saudades, estou desde 2012 em São Paulo, o que me priva de nossos prazerosos encontros.
grato pela gentileza do texto e parabéns pela evocação, a Copa de 70 merece sempre ser lembrada por tudo de bom e ruim que ela evoca.
fiquei feliz com a vitória argelina ontem.
abraço saudoso e amigo,
b.
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