terça-feira, 9 de junho de 2009

Coletânea (8): 24 jan.1965, 'O medo de virar Espanha', Correio da Manhã

Há 45 anos, ainda nos primórdios da ditadura, o uso de analogias externas resultava eficaz nos textos jornalísticos escritos para combatê-la, assim como a linguagem simbólica e metafórica na literatura e na música popular. Tal como no artigo abaixo.



O medo de virar Espanha

Arthur José Poerner

- Está aí a Espanha, onde a ditadura sem mantém até hoje, passados 25 anos do término da Guerra Civil.
Citações desse tipo não são tão difíceis assim de ser ouvidas, hoje em dia, em nosso País, mormente em certos círculos intelectuais, a quem a simples comparação do Brasil dos idos de março com a Espanha da primeira quinzena de julho de 1936 produz uma desagradável sensação de semelhança. De fato, se abstrairmos a antiguidade dos ódios e ressentimentos espanhóis e a violência em que desembocaram, bem como a expectativa frustrada em que o Brasil se mantém, desde abril passado – contribuindo para o descobrimento de coincidências até em minúcias –, deparamos com certas analogias quanto às condições sócio-políticas do Brasil de 64 e da Espanha de 36.
Naturalmente, há, também, na busca da analogia entre aquelas duas situações, inaproximáveis diferenças. Uma delas sobressai, logo à primeira vista, qual seja a da inexistência de anarquistas organizados em nosso País, embora, havendo governo, muitos brasileiros estejam invariavelmente contra, como o espanhol da anedota.

Reforma agrária

É na situação da agricultura espanhola, ou melhor, dos que nela trabalhavam, que encontramos um dos primeiros contatos com a situação brasileira. Segundo o inglês Hugh Thomas, que escreveu um exaustivo e definitivo estudo sobre a Guerra Civil, o “problema da agricultura espanhola era o principal ponto sensível que se irradiava por todo o país”, bem como “a fonte do poder dos anarquistas”. Dos 11 milhões de pessoas que constituíam a população ativa da Espanha em 1936, 4,5 milhões se compunham de trabalhadores agrícolas sem terras, braceros, que passavam a maior parte do ano desempregados e eram recrutados, em condições bastante parecidas às dos nossos mercados de escravos, quando os senhores de terras necessitavam de seus préstimos. A Espanha, por seu turno, deu, também, um “primeiro passo para a Reforma Agrária” – a SUPRA de lá se denominando Instituto de Reforma Agrária –, com a Lei Agrária aprovada, em 1932, pelas Cortes, sem, no entanto, ter sido aplicada, o que poderia significar um começo de solução para o problema, não obstante a classificação de “aspirina para curar apendicite” que lhe fora dada pelo líder socialista espanhol Largo Caballero. Com a vitória dos falangistas na Guerra Civil, aquela apendicite até hoje não foi operada, o que decerto contribui para o mal-estar existente na Espanha e para as ocasionais sortidas dos anarquistas, que, apesar do estado policial vigente, atiraram, ainda há pouco, bombas nas Embaixadas dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Radicalismo

O medieval atraso nas relações agrárias espanholas cooperou, assim, fundamentalmente, para a eclosão de uma guerra, que foi antecedida por uma crescente radicalização das facções em oposição. Da mesma forma que no Brasil do final de 63 e início de 64, surgiam, diariamente, novas siglas na arena política espanhola, a tornar ainda mais difícil a sustentação do governo fraco do premier Casares Quiroga. E essas siglas, particularmente do lado republicano ou de esquerda – a exemplo, também, do que ocorreu em nosso País – encontravam tempo e campo para intermináveis divergências e desacordos. Era a poderosa central sindical socialista UGT (Unión General de Tabajadores) a se empenhar com a central dos sindicatos anarco-sindicalistas CNT (Confederación Nacional del Trabajo) numa luta, inclusive armada, que só se amenizou com os primeiros levantes dos oficiais direitistas, quando ambas as centrais sindicais se uniram para ordenar uma greve geral, ao primeiro indício de insurreição nas guarnições militares. Eram os tiroteios diários entre membros das duas alas do Partido Socialista, partidários de Largo Caballero e Indalécio Prieto, respectivamente. Eram, enfim, os milenares ressentimentos espanhóis – que não encontram similar em nosso País –, capazes de produzir faíscas de ódio até entre monarquias, como acontece, ainda hoje, entre os Bourbons e os carlistas.

Origem de fascista

Pesquisando a origem dos fascistas espanhóis – que encontrariam na Falange de Franco um somatório para todas as suas infindáveis e inumeráveis siglas –, chegaremos à conclusão que quase todos iniciaram suas atividades públicas como socialistas, o que, com uma grande exceção, não acontece no Brasil, onde há uma tendência muito maior para acontecer o inverso, em virtude, talvez, do próprio momento histórico que vivemos, com o fascismo já sepultado, ingloriamente, sob as cinzas de um catastrófico conflito, das quais jamais poderá sair para reviver a façanha de Fênix. Mas, difere a conclusão a que chegamos, se analisarmos as origens dos militares espanhóis e os motivos que os levaram a, quase em peso, aderir à causa fascista na Espanha. E é, então, que vamos deparar, novamente, com algumas analogias ao caso brasileiro, mormente quanto a uma certa minoria dos nossos militares e ao processo de formação profissional. Como diz Hugh Thomas, “o oficial espanhol comum chegava à meia-idade insatisfeito, irritável e direitista”. A definição, que se ajusta aos oficiais de outras forças armadas em tempos de paz, pode ser explicada, a nosso ver, pela maneira um tanto inconseqüente em que desenrola o processo de formação dos cadetes, que são preparados para “glórias” e inimigos que nunca surgem. As glórias, porque começaram a morrer com as últimas campanhas da legiões de Roma, tornam-se inconcebíveis ante o sentido moderno das guerras de mísseis e balísticos. E os inimigos, porque também não podem existir, pelo menos beligerantemente, num mundo preocupado com o desarmamento. Aos oficiais que não aceitam a dura realidade e que se obstinam na procura de uma suposta superioridade sobre os funcionários civis, restam, assim, os chamados “inimigos internos” e os golpes de Estado.

“Inimigos internos”

Na enumeração dos “inimigos internos” – em essência, todos aqueles que não vêem razão para que se fale em “gloriosas tradições” das forças armadas, sem que o pomposo qualificativo seja anteposto, igualmente, às tradições de outros ministérios e instituições de uma república –, os militares espanhóis foram bem mais amplos do que seus colegas de outros países. “Inimigos internos” eram, para os oficiais espanhóis, os separatistas catalães e biscainhos, os socialistas, os maçons, os comunistas e os anarquistas. Mais tarde, já eclodido o levante falangista, também os democratas de centro e todos os suspeitos de haverem votado pela Frente Popular – cujos principais partidos eram o Socialista, a Esquerda Republicana e a União Republicana –, nas eleições de 16 de fevereiro de 1936, passaram a ser “inimigos internos”. Com a vitória da Frente Popular naquele pleito, apesar das manipulações de dados posteriormente feitas pelos falangistas, o general Franco, então membro do Estado-Maior, iniciou (ou melhor, prosseguiu) nas articulações a favor das “forças da ordem”, inclusive insistindo junto ao então primeiro-ministro Portela Valadares para que declarasse o Estado de Guerra, assim impedindo a posse da Frente Popular no governo. Assim, enquanto multidões comemoravam, em toda a Espanha, em meio a grande entusiasmo, a vitória da Frente Popular, Franco e os generais decidiram aguardar até que pudessem impor “a calma e a ordem” aos “inimigos internos”

Medo infundado

Essa calma e essa ordem que Franco anunciou, após o golpe de mão com que se instalou como chefe de Estado em Burgos, ao anunciar que o voto popular seria eliminado em favor de uma “melhor maneira de expressar a vontade popular”; essa clama e essa ordem que um oficial do serviço secreto alemão, mais tarde adido militar na Espanha, chegou a preterir pela polícia mais liberal do várias vezes presidente Azanã – um dos nomes mais expressivos da Frente Popular –, por ter em conta que ela seria traduzida por um retorno do poder às mãos dos grandes proprietários de terras e da Igreja: essa calma e essa ordem que mantém a Espanha, 25 anos depois, numa fase ainda pré-industrial e, sem a mínima dúvida, muito mais atrasada, industrialmente, do que o Brasil, apesar de a Espanha contar com um sistema inegavelmente superior de vias de comunicação; essa calma e essa ordem impostas por militares que, em nosso País, constituem minoria insignificante, embora organizada, pois é fora de dúvida que a mais gloriosa tradição do nosso Exercito é a civilista: essa calma e essa ordem que jamais serviriam a um País, que, embora irrequieta e desordenadamente, estava prestes a assegurar seu lugar de grande potência com os longos braços da prática democrática, agora manietados. Essa calma e essa ordem, enfim, que apenas interessam aos “inimigos internos”.

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