terça-feira, 30 de junho de 2009

Homenagem a Poerner no 15º Congresso da UEE-RJ

28 de junho de 2009 12:32

Prezado Arthur,

A União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro (UEE-RJ) estará realizando seu 15º. Congresso nos dias 03, 04 e 05 de julho na cidade de Volta Redonda, RJ.

Em tempos de crise econômica internacional trazemos para a cidade-símbolo do desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro, historicamente marcada por forte presença industrial e mobilizações operárias, o debate sobre as alternativas de um projeto de desenvolvimento para o país e pela transformação da universidade.

Em nome da diretoria da UEE-RJ, tenho o prazer de convidá-lo para uma homenagem à V. S., em comemoração aos 40 anos do livro "O Poder Jovem", a ser realizado na abertura do debate
“Reforma Universitária” às 17:00 hs de sábado, dia 04 de julho de 2009, em Volta Redonda.

Informo que teremos um carro para pegá-lo em torno de 14:00 hs, no endereço de sua preferência, e trazê-lo de volta ao final dos trabalhos.

Para quaisquer dúvidas e informações, estamos disponíveis no telefone 21. 7820.6399.

um abraço cordial,

Diana Iliescu
Produção do 15º. Congresso da UEE-RJ

sexta-feira, 26 de junho de 2009

40 anos d'O Pasquim

Arthur Poerner


Há exatos 40 anos, chegava às bancas, neste dia 26, a primeira edição d’O Pasquim, que usaria o humor, uma das mais eficientes armas no combate às tiranias, contra a ditadura que nos assolava, aviltava e silenciava. Nos seus cartuns, charges, caricaturas e textos, o que os democratas não podiam e a maioria da chamada grande imprensa não queria dizer contra o regime instaurado no país pelo golpe militar de 1º de abril de1964.

Um dos mestres nessa luta da inteligência contra a força bruta foi o Jaguar, com quem comemorei a efeméride - termo careta que só sairia como gozação no corajoso hebdomadário (idem) - no Bar Lagoa, onde fomos clicados (fotos abaixo) pelo grande Paulo Jabur, que também padeceu nas masmorras ditatoriais: preso aos 20 anos, em 1972, a três meses da formatura em Engenharia, somente foi libertado sete anos depois, com a anistia.

Em junho de 69, eu estava no exterior, após ter sido obrigado a fugir pela janela do Correio da Manhã na noite em que o marechal-presidente Costa e Silva decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

Só depois de voltar ao Brasil, ser preso na redação do Correio da Manhã, passar três meses no DOI-Codi (Quartel da Polícia do Exército, na Barão de Mesquita) e ter que me exilar, é que me tornei correspondente d’O Pasquim na Alemanha.

O artigo inaugural (abaixo) foi escrito em Bonn, então capital da Bundesrepublik Deutschland (Repúblida Federal da Alemanha, a ocidental), sob o impacto emocional do primeiro Carnaval no exílio.







Bundeskarnaval

O Pasquim, nº 87, 04 março 1971

Arthur Poerner, de Bonn


Já ia me aprofundando por aquele corredor escuro logo abaixo da fossa, quando encontrei o Per e a Lúcia Maria (ele, ator daqui que foi ao Brasil fazer um filme para a TV alemã e acabou se casando com a mulatíssima escolhida entre amadores para estrelar a película). Convidado por eles para o primeiro grito do Carnaval de Düsseldorf, recuperei a alegria de viver. Mais do que isso, vibrei, pois, afinal, o Carnaval nasceu por aqui, na tribo germânica dos alamanos, na Floresta Negra e no norte da Suíça, onde está Basiléia e se realizam, todos os anos, famosos bailes de máscaras.

Desaparecido após a Idade Média, o Carnaval veio renascer no século passado, na época de dominação napoleônica, durante a qual adquiriu acentuado caráter de oposição ao invasor francês. Com o término da ocupação, as críticas se transferiram aos governantes locais e até hoje se repetem (geralmente, expressas nos dialetos regionais), mais ou menos como eram feitas aí no Rio nos desfiles das grandes sociedades, naqueles velhos tempos em que ainda havia algo a ser criticado. Como expressão da cultura popular e das tradições regionais, desenvolveram-se na Alemanha o Carnaval do Sul (Floresta Negra), o do Reno (Colônia e Düsseldorf, principalmente) e o de Munique.

Sequioso por me abeberar nas origens, pensei mais uma vez no Rio, mas comecei a desconfiar um pouquinho quando o Per e a Lúcia me recomendaram que viesse de terno e gravata. Como alemão também vai engravatado a jogo de futebol, não seria por isso que eu perderia a chance de me acabar na folia. Fiz a concessão e acabei me arrumando com tanto apuro que cheguei com uma hora de atraso ao Rot-Weiss-Rot (Vermelho-Branco-Vermelho, sociedade carnavalesca tradicional que, àquelas alturas, pelas cores, eu já identificava com o Salgueiro), maldizendo-me pelo tempo perdido.

O grito teria início às 19h e às 20, todos, rigorosamente trajados (em sua maioria, anciãos), continuavam sentados, na maior ordem e tranqüilidade, às mesas que ocupavam todo o salão. Cheguei a pensar que tinha-me enganado de endereço, pois a única diferença que havia em relação a uma recepção nupcial era o tipo de chapéu que alguns senhores mais idosos usavam: uma espécie de gorro bordado de forma retangular, ainda que um pouco mais alto e pontiagudo na parte da frente, junto à testa.

Quase nove da noite e nada; e eu louco de impaciência para ver o momento em que mesas e cadeiras seriam retiradas e partiríamos, enfim, para a ansiada explosão momesca. De repente, a orquestra atacou um dobrado e quatro jovens trajadas como balizas dos nossos Jogos da Primavera abriram tímido cortejo, que deu uma volta em torno das mesas. Atrás delas, uns dez austeros senhores, vestidos com paletós vermelhos, salpicados de frisos dourados.

Otimista incorrigível, pensei comigo: isso aí é só a Comissão de Frente; atrás dela, virão as diversas alas, a bateria, etc... Mas, que nada. Os dez vetustos varões abancaram-se numa mesa do palco improvisado defronte à orquestra e de lá não arredaram pé. Nova perspectiva surgiu quando eles convocaram o maior folião da cidade – o “Albino Pinheiro de Düsseldorf”, imaginei. Com a ajuda providencial de seus pares e de uma bengala, ergueu-se venerando macróbio, para ser condecorado pela sua “luta intransigente em defesa das tradições e da ideologia (sic) do Carnaval”. Depois de ouvir os elogios, em silêncio e posição de sentido, o condecorado fez uma continência ao contrário (com a palma da mão esquerda virada pra fora), respondida pelos demais. Aí o negócio virou Itamarati, com farta distribuição de comendas e insígnias, cada entrega precedida por longos discursos, alguns contra “a onda comercialista que ameaça acabar com o nosso (deles) Carnaval”. Entre os homenageados, dirigentes de entidades congêneres, entre as quais também a Portela alemã (o “Azul e Branco”).

A seguir, foram apresentados números teatrais e musicais, encerrados lá pelas onze com uma conclamação a que todos prestigiassem os festejos da Weiberfastnacht (em tradução literal, Noite de Carnaval das Mulheres), na última quinta-feira antes do Carnaval, quando as mulheres agarram e beijam os homens nas ruas e cortam-lhes as gravatas ao meio – o que simboliza castração –, embora já tenham-me prevenido que raras são as animadinhas com menos de 60. E aí, enfim, começou o grito, com perdão da má palavra. Como haviam anunciado as nossas presenças (da Lúcia e minha) e como estivéssemos sentados em mesa central, a orquestra, numa “homenagem ao Carnaval brasileiro”, resolveu atacar de Ave Maria no morro.

Agradeci em nome do meu país e, por isto, decidiram retribuir com outra “música brasileira bem animada, pra esquentar”, segundo as palavras do maestro, corroboradas pelo presidente do supramencionado Salgueiro. Atendendo a pedidos e estimulado pelos aplausos, coube-me, então, a suprema honra de iniciar o grito de Carnaval deste ano em Düsseldorf. Ao som de Guantanamera, que antecedeu verdadeira avalancha de roques e tuístes. Tu já viu, bicho, que assim não dá pedal mesmo. Daí este meu grito de saudade e inveja de vocês, apesar de todos os surtos gripais* que os acometem aí.

P.S.: A recopidescagem foi inevitável - e não por culpa do controvertido Acordo Ortográfico. Pô - diríamos no Pasca (para os íntimos) -, como eu era prolixo ! O velho Graça (Graciliano Ramos) tinha razão: escrever é cortar, enxugar sempre, mais e mais...

* Ondas de prisão.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

09 jun.2009, no 'Observatório da Imprensa', TV Brasil, debate sobre Simonal



OI NA TV

Wilson Simonal volta à mídia: a reprise é na noite de hoje, madrugada de 5ª, à 0h10, na TV Brasil (ex-TVE), canal 2 (18 na Net)
Por Lilia Diniz em 10/6/2009


Em 1971, o cantor de música popular Wilson Simonal vivia o auge de seu sucesso profissional. Dono de um enorme carisma, era o rei do suingue. Negro, criado em uma favela carioca, filho de uma empregada doméstica, seu único rival no show business era o cantor Roberto Carlos. Simonal vendia milhares de discos, apresentava-se para multidões no Maracanãzinho, no Rio, e contava com importantes contratos publicitários. Mas o sucesso foi bruscamente interrompido. O cantor terminou seus dias no ostracismo, sofrendo de alcoolismo e de depressão. A partir de uma declaração até hoje não comprovada, a mídia rotulou o cantor de "dedo-duro" e alardeou que Simonal era informante da ditadura militar. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (9/6) pela TV Brasil discutiu a postura da imprensa neste caso, que voltou a ser lembrado com o lançamento do filme Simonal – Ninguém sabe o duro que dei.
A imagem do cantor começou a ser abalada quando foi acusado de acionar o extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para prender e espancar seu ex-contador e extrair dele uma confissão de roubo. Simonal suspeitava que o ex-funcionário havia dado um desfalque nas contas de sua empresa. Durante um depoimento no processo que investigava a prisão do ex-contador, o inspetor Mário Borges justificou a ação do órgão com uma polêmica afirmação da qual não tinha provas: "Simonal é há muito tempo informante do DOPS e de outros órgãos policiais, tendo fornecido várias vezes informações positivas sobre atividades subversivas". A imprensa rapidamente condenou o cantor. O jornal carioca de oposição O Pasquim foi um dos mais críticos.
O debate ao vivo contou com a participação em São Paulo de Micael Langer, diretor e roteirista do documentário sobre Simonal. Langer é produtor, roteirista, diretor e pesquisador em curtas-metragens, vídeos institucionais e filmes publicitários. O pesquisador de música popular brasileira Ricardo Cravo Albin também participou no estúdio de São Paulo. Escritor, jornalista e historiador, produziu e idealizou o Dicionário Cravo Albin da MPB e fundou o Instituto Cultural Cravo Albin, uma sociedade civil que promove e incentiva atividades de caráter cultural. No Rio, o programa contou com a presença do jornalista Arthur Poerner, que teve seus direitos políticos suspensos e viveu exilado na Europa por 14 anos. Poerner trabalhou no Correio da Manhã, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa e O Pasquim, entre outros veículos. É autor de diversos livros, entre eles O Poder Jovem, sobre a participação política dos estudantes brasileiros.
Efeito bola de neve
A reportagem exibida no Observatório entrevistou o advogado Antônio Carlos Biscaia, que pediu a condenação do cantor no processo movido por seu ex-contador. Biscaia contou que, ao examinar o processo, concluiu que havia comprovação de crime de extorsão praticado por Simonal, pelo motorista do cantor e três agentes do DOPS. No mesmo dia em que Simonal recebeu um comunicado de que o ex-contador havia entrado na Justiça para requerer seus direitos trabalhistas, o ex-funcionário foi preso e torturado para assinar um documento desistindo do processo. "A prova era inquestionável", disse. Biscaia comentou que o caso teve uma grande repercussão na época. Diversos veículos afirmaram que o cantor colaborava com a ditadura. "Se ele se utilizou de integrantes da repressão política do Estado para a satisfação de um interesse pessoal, isto revela que tinha prestígio e conhecimentos dentro do regime militar", disse.
Para o jornalista e pesquisador musical Sérgio Cabral, também entrevistado na reportagem, o fato de Simonal ser considerado "dedo-duro" aniquilou com a carreira do cantor. "Isto é uma coisa que brasileiro não perdoa. Perdoa até ladrão, perdoa tudo. Mas `dedo-duro´, não", disse. O jornalista explicou que a imprensa de oposição ao regime militar não podia "espinafrar" o governo porque a censura não permitia que as matérias fossem publicadas. A saída era "espinafrar" quem apoiava o regime. Nomes como Nelson Rodrigues, Gustavo Corção e Roberto Campos não foram perdoados pelos meios de comunicação. Sérgio Cabral avalia que Simonal "não tinha cabeça de político, de ser espião", mas que o cantor tinha importantes contatos no regime. "Ele não tinha ideologia de ser contra ou a favor da esquerda", disse.
Muitas vozes da mesma história
No debate ao vivo, Dines pediu para Micael Langer explicar o porquê de o advogado Antônio Carlos Biscaia, peça-chave no processo contra Simonal, não ter sido entrevistado para o filme. Langer explicou que outros nomes que fizeram parte da história contada no documentário não puderam ser incluídos – como Jairzinho, Hebe Camargo e César Camargo Mariano – por uma questão de contingência de produção. O filme demorou cerca de sete anos para ser concluído e foi dirigido por três profissionais – Langer, Claudio Manoel e Calvito Leal.
"O balanço alegre de Simonal incomodava a quem queria música de combate?", questionou Dines no debate. Ricardo Cravo Albin considera que havia um "patrulhamento musical" no período da ditadura militar. "Sempre houve uma crítica que queria o que achava ser o melhor, como os grandes nomes dos festivais de música. Queriam música de mais densidade e de mais respeitabilidade histórica, que contribuísse para derrubar o regime autoritário", explicou. Segundo ele, para estudar a polêmica em torno de Simonal é preciso analisar a "época de exacerbação em que tudo ocorreu". Simonal tinha um "extraordinário talento", mas sua música "mais leve" não era tão aceita pelo intelectuais quanto o trabalho de outros artistas que se destacaram no período, como Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Cravo Albin disse que Simonal era um mito para um grande número de brasileiros e lembrou ter testemunhado um show no Maracanãzinho lotado onde o cantor "conduziu a massa".
Arthur Poerner comentou que em um "estado policial" cria-se um clima de suspeitas infundadas. Como a censura impedia que se falasse da ditadura, buscavam-se alternativas e muitas vezes criavam-se suspeitas sobre pessoas que colaboravam com o regime. "Simonal deu motivo para isso pela maneira como se comportou no caso", avaliou. Para Poerner, Simonal foi o primeiro pop star negro do Brasil. Durante muito tempo, o jornalista "teve a impressão" de que o cantor era um colaborador da ditadura militar. Somente a partir de uma entrevista de Nelson Motta ao Pasquim21, anos depois, foi convencido do contrário. Poerner comentou que o cantor tinha o perfil "marrento". Mesmo depois de o caso ser encerrado, declarava ser "de direita e simpatizante da ditadura". O jornalista relembrou que durante o tempo em que viveu exilado na Europa presenciou situações nas quais pessoas inocentes passavam a ser suspeitas de colaborar com regimes de exceção.
Ainda um tabu
Ricardo Cravo Albin classifica a o caso de Simonal como uma "tragédia do poder". Um negro de origem humilde alcança grande sucesso e é roubado por seu contador. "Os poderosos acham que podem tudo", avaliou. O pesquisador musical não acredita que o cantor fosse "dedo-duro", mas "pediu um castigo" para o ex-funcionário que havia cometido um delito e não avaliou a consequência trágica que a ação ocasionaria. Na opinião de Cravo Albin, houve erro da parte do cantor, mas a punição foi prolongada por toda a vida. "Wilson Simonal morreu sem anistia", disse.
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Injustiça incômoda
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 506, exibido em 9/6/2009
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
O cantor Wilson Simonal morreu há nove anos, acabrunhado com as acusações de que era um delator e colaborador dos órgãos de segurança durante a ditadura. O documentário Ninguém sabe o duro que eu dei é uma dolorosa reconstrução dos anos de chumbo, quando a intolerância do regime espalhou-se e impregnou todos os cantos e recantos da sociedade.
A mídia estava sob censura, na realidade em regime de autocensura, mesmo assim espalhou-se a convicção de que Simonal era um colaborador dos órgãos de repressão. Indícios foram transformados em evidências, estas em fatos e, de repente, a sua confissão de que era um homem de direita foi transformada em confissão de ser cúmplice dos torturadores.
Simonal cometeu um crime: pediu aos amigos policiais que castigassem o seu contador que lhe dera um desfalque. Este crime poderia ter sido punido se o clima de intolerância e suspeição não permeasse o comportamento de todos.
A verdade é que Simonal incomodava muita gente: incomodava os politicamente corretos e os incorretos, os que gostavam da Tropicália e os que não suportavam o balanço da pilantragem.
Nos Estados Unidos, a era McCarthy também produziu inúmeras injustiças. A diferença com os nossos anos de chumbo é que se estenderam ao longo de duas décadas. Nestas circunstâncias as injustiças só podem ser reparadas postumamente.
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terça-feira, 9 de junho de 2009

Coletânea (8): 24 jan.1965, 'O medo de virar Espanha', Correio da Manhã

Há 45 anos, ainda nos primórdios da ditadura, o uso de analogias externas resultava eficaz nos textos jornalísticos escritos para combatê-la, assim como a linguagem simbólica e metafórica na literatura e na música popular. Tal como no artigo abaixo.



O medo de virar Espanha

Arthur José Poerner

- Está aí a Espanha, onde a ditadura sem mantém até hoje, passados 25 anos do término da Guerra Civil.
Citações desse tipo não são tão difíceis assim de ser ouvidas, hoje em dia, em nosso País, mormente em certos círculos intelectuais, a quem a simples comparação do Brasil dos idos de março com a Espanha da primeira quinzena de julho de 1936 produz uma desagradável sensação de semelhança. De fato, se abstrairmos a antiguidade dos ódios e ressentimentos espanhóis e a violência em que desembocaram, bem como a expectativa frustrada em que o Brasil se mantém, desde abril passado – contribuindo para o descobrimento de coincidências até em minúcias –, deparamos com certas analogias quanto às condições sócio-políticas do Brasil de 64 e da Espanha de 36.
Naturalmente, há, também, na busca da analogia entre aquelas duas situações, inaproximáveis diferenças. Uma delas sobressai, logo à primeira vista, qual seja a da inexistência de anarquistas organizados em nosso País, embora, havendo governo, muitos brasileiros estejam invariavelmente contra, como o espanhol da anedota.

Reforma agrária

É na situação da agricultura espanhola, ou melhor, dos que nela trabalhavam, que encontramos um dos primeiros contatos com a situação brasileira. Segundo o inglês Hugh Thomas, que escreveu um exaustivo e definitivo estudo sobre a Guerra Civil, o “problema da agricultura espanhola era o principal ponto sensível que se irradiava por todo o país”, bem como “a fonte do poder dos anarquistas”. Dos 11 milhões de pessoas que constituíam a população ativa da Espanha em 1936, 4,5 milhões se compunham de trabalhadores agrícolas sem terras, braceros, que passavam a maior parte do ano desempregados e eram recrutados, em condições bastante parecidas às dos nossos mercados de escravos, quando os senhores de terras necessitavam de seus préstimos. A Espanha, por seu turno, deu, também, um “primeiro passo para a Reforma Agrária” – a SUPRA de lá se denominando Instituto de Reforma Agrária –, com a Lei Agrária aprovada, em 1932, pelas Cortes, sem, no entanto, ter sido aplicada, o que poderia significar um começo de solução para o problema, não obstante a classificação de “aspirina para curar apendicite” que lhe fora dada pelo líder socialista espanhol Largo Caballero. Com a vitória dos falangistas na Guerra Civil, aquela apendicite até hoje não foi operada, o que decerto contribui para o mal-estar existente na Espanha e para as ocasionais sortidas dos anarquistas, que, apesar do estado policial vigente, atiraram, ainda há pouco, bombas nas Embaixadas dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Radicalismo

O medieval atraso nas relações agrárias espanholas cooperou, assim, fundamentalmente, para a eclosão de uma guerra, que foi antecedida por uma crescente radicalização das facções em oposição. Da mesma forma que no Brasil do final de 63 e início de 64, surgiam, diariamente, novas siglas na arena política espanhola, a tornar ainda mais difícil a sustentação do governo fraco do premier Casares Quiroga. E essas siglas, particularmente do lado republicano ou de esquerda – a exemplo, também, do que ocorreu em nosso País – encontravam tempo e campo para intermináveis divergências e desacordos. Era a poderosa central sindical socialista UGT (Unión General de Tabajadores) a se empenhar com a central dos sindicatos anarco-sindicalistas CNT (Confederación Nacional del Trabajo) numa luta, inclusive armada, que só se amenizou com os primeiros levantes dos oficiais direitistas, quando ambas as centrais sindicais se uniram para ordenar uma greve geral, ao primeiro indício de insurreição nas guarnições militares. Eram os tiroteios diários entre membros das duas alas do Partido Socialista, partidários de Largo Caballero e Indalécio Prieto, respectivamente. Eram, enfim, os milenares ressentimentos espanhóis – que não encontram similar em nosso País –, capazes de produzir faíscas de ódio até entre monarquias, como acontece, ainda hoje, entre os Bourbons e os carlistas.

Origem de fascista

Pesquisando a origem dos fascistas espanhóis – que encontrariam na Falange de Franco um somatório para todas as suas infindáveis e inumeráveis siglas –, chegaremos à conclusão que quase todos iniciaram suas atividades públicas como socialistas, o que, com uma grande exceção, não acontece no Brasil, onde há uma tendência muito maior para acontecer o inverso, em virtude, talvez, do próprio momento histórico que vivemos, com o fascismo já sepultado, ingloriamente, sob as cinzas de um catastrófico conflito, das quais jamais poderá sair para reviver a façanha de Fênix. Mas, difere a conclusão a que chegamos, se analisarmos as origens dos militares espanhóis e os motivos que os levaram a, quase em peso, aderir à causa fascista na Espanha. E é, então, que vamos deparar, novamente, com algumas analogias ao caso brasileiro, mormente quanto a uma certa minoria dos nossos militares e ao processo de formação profissional. Como diz Hugh Thomas, “o oficial espanhol comum chegava à meia-idade insatisfeito, irritável e direitista”. A definição, que se ajusta aos oficiais de outras forças armadas em tempos de paz, pode ser explicada, a nosso ver, pela maneira um tanto inconseqüente em que desenrola o processo de formação dos cadetes, que são preparados para “glórias” e inimigos que nunca surgem. As glórias, porque começaram a morrer com as últimas campanhas da legiões de Roma, tornam-se inconcebíveis ante o sentido moderno das guerras de mísseis e balísticos. E os inimigos, porque também não podem existir, pelo menos beligerantemente, num mundo preocupado com o desarmamento. Aos oficiais que não aceitam a dura realidade e que se obstinam na procura de uma suposta superioridade sobre os funcionários civis, restam, assim, os chamados “inimigos internos” e os golpes de Estado.

“Inimigos internos”

Na enumeração dos “inimigos internos” – em essência, todos aqueles que não vêem razão para que se fale em “gloriosas tradições” das forças armadas, sem que o pomposo qualificativo seja anteposto, igualmente, às tradições de outros ministérios e instituições de uma república –, os militares espanhóis foram bem mais amplos do que seus colegas de outros países. “Inimigos internos” eram, para os oficiais espanhóis, os separatistas catalães e biscainhos, os socialistas, os maçons, os comunistas e os anarquistas. Mais tarde, já eclodido o levante falangista, também os democratas de centro e todos os suspeitos de haverem votado pela Frente Popular – cujos principais partidos eram o Socialista, a Esquerda Republicana e a União Republicana –, nas eleições de 16 de fevereiro de 1936, passaram a ser “inimigos internos”. Com a vitória da Frente Popular naquele pleito, apesar das manipulações de dados posteriormente feitas pelos falangistas, o general Franco, então membro do Estado-Maior, iniciou (ou melhor, prosseguiu) nas articulações a favor das “forças da ordem”, inclusive insistindo junto ao então primeiro-ministro Portela Valadares para que declarasse o Estado de Guerra, assim impedindo a posse da Frente Popular no governo. Assim, enquanto multidões comemoravam, em toda a Espanha, em meio a grande entusiasmo, a vitória da Frente Popular, Franco e os generais decidiram aguardar até que pudessem impor “a calma e a ordem” aos “inimigos internos”

Medo infundado

Essa calma e essa ordem que Franco anunciou, após o golpe de mão com que se instalou como chefe de Estado em Burgos, ao anunciar que o voto popular seria eliminado em favor de uma “melhor maneira de expressar a vontade popular”; essa clama e essa ordem que um oficial do serviço secreto alemão, mais tarde adido militar na Espanha, chegou a preterir pela polícia mais liberal do várias vezes presidente Azanã – um dos nomes mais expressivos da Frente Popular –, por ter em conta que ela seria traduzida por um retorno do poder às mãos dos grandes proprietários de terras e da Igreja: essa calma e essa ordem que mantém a Espanha, 25 anos depois, numa fase ainda pré-industrial e, sem a mínima dúvida, muito mais atrasada, industrialmente, do que o Brasil, apesar de a Espanha contar com um sistema inegavelmente superior de vias de comunicação; essa calma e essa ordem impostas por militares que, em nosso País, constituem minoria insignificante, embora organizada, pois é fora de dúvida que a mais gloriosa tradição do nosso Exercito é a civilista: essa calma e essa ordem que jamais serviriam a um País, que, embora irrequieta e desordenadamente, estava prestes a assegurar seu lugar de grande potência com os longos braços da prática democrática, agora manietados. Essa calma e essa ordem, enfim, que apenas interessam aos “inimigos internos”.