domingo, 23 de novembro de 2014

RESSURREIÇÃO NA ABL


3 de novembro de 2014 • Rio de Janeiro 

      Se julho foi um mês de luto na Academia Brasileira de Letras, com as partidas do poeta e crítico literário carioca Ivan Junqueira, do romancista e jornalista baiano João Ubaldo Ribeiro e do dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, outubro seria o da ressurreição da Casa em sua plenitude, com as eleições para as três cadeiras vagas, respectivamente, do poeta e jornalista maranhense Ferreira Gullar, do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello e, na última quinta-feira, do escritor e jornalista mineiro Zuenir Ventura.
      Este, com o seu espírito conciliatório, teve importante papel num momento especialmente traumático da minha vida, quando fui preso, em abril de 1970, no Correio da Manhã. Como chefe de redação e com a sua vocação para o diálogo, Zuenir tentou adiar o momento em que me levariam, apelando, inclusive, para a caridosa mentira de que eu seria essencial ao fechamento da edição. Não colou, obviamente, mas aqueles minutos do papo que manteve com os meus captores foram suficientes para que eu promovesse uma 'limpeza' nos bolsos do paletó, com a retirada do caderninho de telefones e endereços e de outros papéis que, apreendidos, certamente acarretariam sustos e aborrecimentos a terceiros. Parabéns, Zuenir !
Arthur Poerner

domingo, 16 de novembro de 2014

Um pouco de gurufim para Leandro


      Ao falar do importante pensador que acabamos de perder, não se pode omitir o seu pai, o médico sanitarista catarinense Valério Konder, expoente do PCB que acumulou uma vintena de prisões políticas desde o Movimento da Aliança Nacional Libertadora de 1935, a última delas, pouco antes da morte, durante a ditadura militar, que já o havia privado dos direitos políticos. Conheci antes o Valério, argumento de que se valia o Leandro, naquele seu eterno jeito brincalhão, para inverter a nossa diferença de idade: "O Poerner é mais velho do que eu. Era amigo do Papai, que  nos apresentou".
      Já no nosso exílio alemão, como ele era o que, à época, chamávamos de boa-pinta, num país em que nós, brasileiros, parecíamos ter boa aceitação entre as liberadas nativas, numa ocasião em que a discussão do nosso grupo ameaçava deixar o amplo espaço do marxismo para degenerar na distribuição de pechas de 'mulherengo", o Leandro soube se acautelar e poupar outros visados ao decretar, em solene tom filosófico: "Mulher da gente só se conta a partir de um ano de coabitação". Foi um alívio generalizado entre os 'galinhas' presentes
      Ainda a título de gurufim, aquela saudável prática de comunidades negras não só no Rio, mas também em São Paulo, de amenizar a tristeza dos velórios, homenageando os mortos com brincadeiras, cantos e danças, não posso esquecer do apelido dado ao Leandro e ao Carlos Nelson Coutinho, filósofo baiano que foi seu parceiro de estudos por quatro décadas, ambos entusiásticos admiradores da obra do filósofo e político marxista e humanista húngaro György Lukács: os "Aprendizes de Lucas". Não lembro se a autoria, com a alusão à homônima escola de samba, foi do Maurício Azêdo ou do Sérgio Cabral pai, mas a gozação saiu do nosso grupo de jornalistas da resistência à ditadura, no qual os arroubos marxistas não arrefeceram a paixão pelas escolas, em que alguns, inclusive, desfilávamos nos carnavais.

Arthur Poerner


Leandro Konder, um pensador marxista


      Bem que o jovem porteiro maranhense me avisou, quando voltei de um encontro externo, que havia morrido "um filósofo importante". Logo eu saberia que se tratava do Leandro Konder, um amigo de meados dos anos 1960, parceiro na heroica e, afinal, malograda tentativa de resistência à ditadura pelo semanário Folha da Semana,  com quem estreitei convivência durante o exílio na Alemanha, onde ele chegou dois anos depois de mim, em 1972, após haver sido preso e torturado no Brasil.
      Na volta do exílio, com a desintegração do PCB, onde ele militara por 31 anos (1951/1982), trilhamos caminhos partidários diferentes: ele, no PT, onde já não o encontrei ao deixar o PDT, em 2006, após a morte do Brizola. Havia migrado para a fundação do PSOL, com um querido amigo comum, o Milton Temer, este dos meus tempos da Marinha. Nada impediu, contudo,  que fossem sempre muito ricos e bem-humorados os reencontros que tivemos, como o da entrevista que fizemos com ele, em sua residência, para a revista O Pasquim 21. Para isto, certamente contribuiu o fato de compartilharmos algo de mais essencial: a tese de que o capitalismo jamais conseguiu responder às críticas que lhe fez Karl Marx, um pensador do século 19. O que não significa que tenham sido, plenamente, corretas e acertadas as alternativas às críticas postas em prática até agora.
      Formado em Direito, como eu, Leandro se doutorou em Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da   UFRJ, em 1987, e se tornou, a seguir, professor dos Departamentos de Educação da PUC/RJ e de História da UFF. Mas, ficará mesmo na memória nacional como um dos mais notáveis estudiosos brasileiros do marxismo, especialmente da obra do filósofo e político humanista húngaro  György Lukács, discípulo de Hegel que se notabilizou pela criação de uma estética marxista. Leandro deixa vasta obra sobre o socialismo, com livros como "Marxismo e alienação" (1965), "Marx, vida e obra" (1968), "A democracia e os comunistas no Brasil" (1980) e "A derrota da dialética" (1988). Se tivesse que sugerir algum ao Welerson, o porteiro, a quem já andei emprestando alguns livros, seria "O que é dialética", o mais popular, se é que podemos usar o adjetivo para obras filosóficas.
     Ele morreu na terça-feira, 12, aos 78 anos, de complicações decorrentes do Mal de Parkinson, de que padecia há cerca de 20 anos. A última vez em que nos falamos foi quando lhe telefonei, na primeira metade do ano, para dar-lhe os pêsames pela morte, em São Paulo, do Rodolfo, seu único irmão, jornalista e escritor de quem também fui amigo.

Arthur Poerner

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

AINDA O ENTULHO DA VITÓRIA DA DILMA


     Pela quarta vez seguida, o PT derrotou o PSDB nas eleições presidenciais, o que o levará, ao final do segundo mandato da Dilma, a completar 16 anos de ininterrupta permanência no poder, feito jamais alcançado, democraticamente, em nosso país. Para indisfarçável e raivosa frustração dos vencidos no inquestionável veredicto das urnas, que, até o dia mesmo do pleito, recorreram às mais escusas e indecorosas manobras para ganhar no grito, com a ajuda de uma publicação cuja maior utilidade, mais psicológica do que midiática, tem sido a de distrair os pacientes que vivem a tormentosa iminência dos 'motorzinhos' nos consultórios odontológicos; e, já iniciada a votação, com o boato da morte, por envenenamento, do doleiro Alberto Yousseff. Ou será que pode pairar alguma dúvida sobre a candidatura que se pretendia favorecer com mais esta mentira ?
    Não se pode esquecer, ainda, que a vitória do PT, com o inestimável auxílio das redes sociais, foi, também, sobre a chamada grande mídia, que, novamente, não se avexou de tomar o partido da oposição, mesmo quando, para isto, a distorção dos fatos lhe pareceu indispensável. Daí a amarga decepção de que veio eivada a maioria dos comentários que se seguiram ao resultado, com as honrosas exceções do que  escreveram, entre outros, no Globo, por exemplo, os coleguinhas Flávia Oliveira, Francisco Bosco, José Casado, Ilimar Franco, Ancelmo Góis e Frei Betto.
     Alguns dos comentários mais amargamente engajados chegaram a acusar o PT de dividir o país. Talvez porque o Aécio - pessoa afável, que me foi apresentada num aniversário do Ziraldo - chegou a anunciar, num arroubo bolivariano, que iria libertá-lo. Ou porque a Dilma ganhou só (?) com 51,64% dos votos. Mas, o Hollande chegou à presidência, com 51,62%, e o Obama, com 51,42%, e não me consta que se tenha falado que a França ou os EUA estavam divididos.
     O mais provável - e devemos, humildemente, reconhecê-lo - é que o Brasil ainda vive uma fase de aprendizado de democracia, depois de mais de três séculos de escravismo, só extinto às vésperas da proclamação da República, em que, mesmo fora das ditaduras escancaradas do Estado Novo e da militar (1964-1985), raros foram os governos realmente democráticos. É por isto que ainda não podemos ser amigos de quem vota diferente, com a possível exceção de Minas, onde, segundo o falecido ex-governador e ex-ministro da Justiça Milton Campos, um liberal-democrata, "brigam as ideias, não as pessoas". Mais uma razão para valorizar os votos que, a partir das Alterosas, garantiram, com os do Nordeste, a reeleição da Dilma.
     Mas, por que continuar me estendendo sobre um entulho que já está sendo adicionado ao lixo da história ? Não só porque é de lá, dos depósitos de detritos regressivos e reacionários, que ecoam as sinistras pregações de apelos aos quarteis, tais como as dos igualmente sempre derrotados udenistas dos meados do século passado, mas também porque é preciso, antes que os garis concluam o seu trabalho, preservar algumas pistas para os nossos futuros historiadores. E, ainda, porque as comemorações de mais um triunfo não podem apagar a memória do mais recente capítulo da luta do nosso povo pela igualdade democrática, parte inalienável da sua identidade. Foi com o Lula e o PT que ele pôde, afinal, provar o tal bolo que nunca estava suficientemente crescido para começar a ser compartilhado.
                                                      
                                                               Arthur Poerner