sábado, 30 de agosto de 2014

Um amigo clandestino

   
     O Brasil atravessou desde junho, quase coincidindo com o início da Copa, um período de significativas perdas de expoentes em várias áreas, a começar, às véspera do jogo inaugural, com a partida da cantora Marlene. Só na Academia Brasileira de Letras, foram três grandes nomes em menos de um mês: Ivan Junqueira, João Ubaldo e Ariano Suassuna. Com a paralela ocorrência, no plano internacional, do massacre de civis palestinos por Israel na Faixa de Gaza e da comunidade yazidi pelos jihadistas no Iraque, começou a faltar aquele mínimo de tempo de recolhimento para se chorar os que se foram. O momento era mesmo de prevalência da morte. Foi o que senti, claramente, com o falecimento, aos 88 anos, no dia 16, de um dos meus amigos mais antigos e queridos, o embaixador Ovídio de Andrade Melo.



     Conheci o Ovídio em Argel, em 1965, quando ali cheguei para acompanhar o ex-governador Miguel Arraes em sua adaptação ao longo exílio, o que contribuiu para que, no ano seguinte, um decreto ditatorial também suspendesse os meus direitos políticos. Ele sobrevivia num Itamaraty regido pelo vergonhoso princípio "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Nossa amizade tinha que ser clandestina, como foi o nosso reencontro na minha primeira visita a Londres, em 1969 - ele, já como cônsul, coordenando o meu roteiro cultural, em que não deixou de incluir, como obrigatórias, as visitas ao túmulo de Karl Marx, no cemitério de High Gate, e à casa do William Shakespeare, em Stratford on Avon. Foi, enfim, um amigo que enriqueceu a minha formação política e cultural, e será personagem do livro de memórias que estou escrevendo. E com o qual só pude me encontrar às claras, nos bares e livrarias do Leblon, com o fim da ditadura.

9 comentários:

Heitor Schueler Reis disse...

Caro Poerner, não sabia dessa triste notícia. Conheci o Ovídeo em 2006, quando voltei para o Rio depois de 26 anos fora. Foi quando nos reencontramos no calçadão de Copacabana, lembra-se? Tive a oportunidade de conversar bastante com o Ovídeo e, coincidentemente, tinha acabado de ler, no livro do Elio Gaspari, o episódio de Angola, quando, devido sua atuação importantíssima, conseguiu que o governo totalitário de direita do Brasil fosse o primeiro pais a reconhecer a nova república socialista de Angola, fato inédito. Mais um importante homem para o Brasil que se vai e nossa(?) mídia empresa nada registra. Lamento. Abs. Schueler.

Adail Ivan de Lemos disse...

Parabéns Arthur,

Comovente o valor que você deu a sua amizade com Ovídio de Andrade Melo.

Desconfio dos “socialistas” que não sentem afeto por seus companheiros.

Abraços

Adail Ivan de Lemos

Ricardo Cravo Albin disse...

Meu caro e muito atento amigo Poerner , a comunicação que me faz da morte de Ovídio de Mello me acabrunha . Também de mim Ovídio foi amigo , além de ser eu dele admirador . A tal ponto que fui dos primeiros a quem ele mostrou suas belas telas naïves . Logo , ele me pediu que escrevesse uma apresentação de sua obra para a primeira individual . O que fiz com o maior prazer . Portanto , agradeço comovido a v. por me comunicar o fato . O que me deixa com a certeza de que perdeu o Brasil um grande filho e um caráter precioso . Abraços Ricardo Cravo Albin

Elisa Larkin Nascimento disse...

Arthur, parabéns! Agradeço a oportunidade que nos deu de conhecer mais um pouco dessa história que os poderosos não querem deixar contar. O registro enriquece o já conhecido trajetória que você trilhou e cujo relato você faz com a ternura e sensibilidade que o permitiu enxergar a questão racial antes e de forma mais profunda que muitos. Um abraço!

Eliana Madeira disse...

É verdade, querido, muitas perdas. Bom texto como de hábito.
Beijo

Alfredo Herkenhoff disse...

Arthur Poerner

Como sempre, gentileza, argúcia, elegância...
Bacana
Abração
Alfredo

Unknown disse...

Querido Arthur,
Obrigada, fico muito comovida por suas lindas palavras, como filha deste homem brilhante, lutador, corajoso que tanto fez pela política externa brasileira, que na carreira diplomática sempre lutou por um Brasil melhor, que nos tempos da ditadura lutou clandestinamente e ajudou tanta gente. Na vida pessoal era um marido, pai e avô exemplar, divertido, carinhoso, cuidadoso, preocupado com o bem estar de todos. As saudades já imensas...
Um beijo muito carinhoso p vc
Helena A. Melo
5 de setembro de 2014 16:13

Paulo Jabur disse...


Poerner: é sempre bom conhecer alguém digno ainda que para mim, neste caso, seja postumamente.

Abs.

Unknown disse...

Querido Arthur,

Não acredito que se recorde de mim, pois nos encontramos poucas vezes, sou neta do Ovídio e seu texto me emocionou bastante.
Guardo comigo as lições humanistas do meu avô e também, espero, sua eterna curiosidade e amor pelo conhecimento e pelo questionamento. Assim como, por meio de pessoas como vc, será mantida viva a trajetória de pessoas que abriram mão de benefícios pessoais em prol de sonhos coletivos, e não o contrário.
Como historiadora, acredito na relevância e no poder da Memória. Por isso, aguardo ansiosa pelo seu livro. É necessário tornar públicos esses relatos. As novas gerações precisam saber que em nossa História há homens e mulheres de quem se orgulhar.

Muito obrigada pela tocante homenagem. Todos vcs merecem nosso reconhecimento.

Um fte abraço,

Beatriz Andrade