sexta-feira, 31 de março de 2017

No compasso da censura - Samba proibido

 
No link, Poerner fala da parceria com Candeia, ao som de trechos do samba.

Jornal: O Globo - Segundo Caderno - Data: 26/03/2017 - Por Mariana Filgueiras.


Desde o início de 2015, o Arquivo Nacional está digitalizando todo seu acervo de documentos da ditadura militar, um trabalho de valor fundamental para a preservação da história do país - e que deve ser concluído até dezembro deste ano. Nas milhares de caixas de documentos, há toda a leva de letras musicais que foram submetidas à censura entre 1964 e 1985. No total, são 13.743 letras de músicas, e mais da metade já foi disponibilizada para o público no site da instituição. Entre elas, cerca de 1.500 eram sambas, de compositores como Paulinho da Viola, Candeia, Martinho da Vila, Leci Brandão, Nei Lopes, Zé Kéti, Elton Medeiros e tantos outros. É neste montante que se concentrará esta série de reportagens do GLOBO, que vai contar as histórias de bastidores destas canções, as circunstâncias em que se deram os vetos e a reação dos compositores ao ver esses documentos originais pela primeira vez.

CANDEIA E O 'MORRO DO SOSSEGO'

RIO – Era a noite de Sexta-Feira da Paixão de 1968. O jornalista e escritor carioca Arthur Poerner, que já havia sido preso pelo regime militar, hospedava em casa, no Jardim Botânico, o amigo uruguaio Eduardo Galeano, que colhia informações para o livro “As veias abertas da América Latina”, que se tornaria um clássico quando publicado, três anos depois. Galeano pediu para Poerner levá-lo a um terreiro de quimbanda que funcionava no Morro do Sossego, ali perto.

Voltaram de lá tão impressionados “com o que havia de protesto anárquico no ritual”, especialmente com a figura de um preto velho, o Vovô Catirino, lembra Poerner, que chegou em casa e escreveu um poema sobre o episódio, “Morro do Sossego” (Galeano também relataria o que viu em 1978, no livro “Dias e noites de amor e guerra”). O poema ficou na gaveta por dois anos, até o dia em que um novo amigo, Antonio Candeia Filho, o Candeia — sambista que surgia com força impressionante na Portela — convidou Poerner para uma parceria musical. O jornalista entregou o mote guardado ao sambista: “Ó Catirino menino, pombo que escapa ao morcego/ seu sangue quer preservar/ Ó, Catirino inquilino, sossega lá no Sossego...”

A discussão sobre a censura na música popular brasileira existe há um tempo, mas não no samba’
- Stephen BocskayPesquisador

— Quando leu o poema, Candeia quis musicá-lo. Ele era, também, à sua maneira, um contestador do sistema e da opressão, profundamente engajado na luta pela pureza do samba e contra a discriminação racial e social, duas das muitas causas pelas quais se batia. No fim daquele ano, eu já estava exilado na Alemanha, e ele me escreveu, informando que o conjunto Nosso Samba gravaria a composição “em janeiro, o mais tardar”, e que a Clara Nunes “já a cantarolava”. Mandou até uma fita K7 com uma gravação caseira, que guardo até hoje. Eu nunca soube da censura. Nem os meus prontuários no Dops e no SNI se referiam ao fato — detalha o jornalista, aos 76 anos, autor de “O poder jovem”, de 1968, best-seller sobre a história do movimento estudantil brasileiro, dos primeiros livros a serem recolhidos pós-AI-5.

A confirmação só aconteceu agora: a letra fora de fato vetada, e de acordo com o parecer dos censores, dado no dia 26 de maio de 1971, “por incentivar a luta de classes”. O documento acaba de ser encontrado durante o processo de digitalização das letras musicais que eram submetidas à censura na ditadura militar (1964-1985), minucioso trabalho a que o Arquivo Nacional deu início em 2015 e que só deve se concluir em dezembro deste ano — e que já revelou outras canções inéditas da MPB, conforme publicado no GLOBO quando do início do trabalho.
No total, são 13.743 letras de músicas, e mais da metade já foi disponibilizada para o público no site da instituição. Entre elas, cerca de 1.500 eram sambas, de compositores como Paulinho da Viola, que teve apenas uma música censurada em sua carreira, “Meu sapato”, de 1971. A canção foi alterada por ele, ganhando novos versos, tendo sido gravada apenas cinco anos depois, no álbum “Memórias cantando”, de 1976. Ou como Martinho da Vila, Leci Brandão, Nei Lopes, Zé Kéti, Elton Medeiros e tantos outros. É neste montante que se concentrará esta série de reportagens que tem início hoje e vai até quarta-feira.
O samba “Morro do Sossego” só foi gravado em 1988, por Cristina Buarque, num disco que homenageava Candeia dez anos depois de sua morte, em 1978. A intérprete o escolheu para o repertório por ser um samba “que ele gostava de cantar nas rodas de samba, apesar de nunca ter gravado”.
A confirmação só aconteceu agora: a letra fora de fato vetada, e de acordo com o parecer dos censores, dado no dia 26 de maio de 1971, “por incentivar a luta de classes”. O documento acaba de ser encontrado durante o processo de digitalização das letras musicais que eram submetidas à censura na ditadura militar (1964-1985), minucioso trabalho a que o Arquivo Nacional deu início em 2015 e que só deve se concluir em dezembro deste ano — e que já revelou outras canções inéditas da MPB, conforme publicado no GLOBO quando do início do trabalho.
No total, são 13.743 letras de músicas, e mais da metade já foi disponibilizada para o público no site da instituição. Entre elas, cerca de 1.500 eram sambas, de compositores como Paulinho da Viola, que teve apenas uma música censurada em sua carreira, “Meu sapato”, de 1971. A canção foi alterada por ele, ganhando novos versos, tendo sido gravada apenas cinco anos depois, no álbum “Memórias cantando”, de 1976. Ou como Martinho da Vila, Leci Brandão, Nei Lopes, Zé Kéti, Elton Medeiros e tantos outros. É neste montante que se concentrará esta série de reportagens que tem início hoje e vai até quarta-feira.
O samba “Morro do Sossego” só foi gravado em 1988, por Cristina Buarque, num disco que homenageava Candeia dez anos depois de sua morte, em 1978. A intérprete o escolheu para o repertório por ser um samba “que ele gostava de cantar nas rodas de samba, apesar de nunca ter gravado”.

Letra de 'O morro do sossego' vetade por 'incentivar a luta de classes' - Reprodução

— Ele nunca comentou a censura desse samba — observou Cristina, ao ver o documento pela primeira vez, na última segunda-feira, onde percebeu também os erros de datilografia da própria gravadora que enviou a letra (em vez de “Sinhá, pra melhorá”, é “E sonhar pra melhorar”). — Procurei no livro “Candeia, luz da inspiração”, escrito por um grande 



Letra de 'O morro do sossego' vetade por 'incentivar a luta de classes' - Reprodução

— Ele nunca comentou a censura desse samba — observou Cristina, ao ver o documento pela primeira vez, na última segunda-feira, onde percebeu também os erros de datilografia da própria gravadora que enviou a letra (em vez de “Sinhá, pra melhorá”, é “E sonhar pra melhorar”). — Procurei no livro “Candeia, luz da inspiração”, escrito por um grande amigo dele, João Baptista Vargens, mas não se fala nesse assunto. O samba só é citado na discografia.
Quem está farejando os documentos raros deste período específico da história do gênero é o pesquisador musical americano e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Stephen Bocskay, que está finalizando o livro “Samba e afropolítica durante a ditadura militar brasileira”, ainda sem editora. É à distância que ele vem conseguindo esmiuçar o acervo recém-escaneado pelo Arquivo Nacional.
— Como Candeia foi um homem tão dedicado ao combate da opressão da cultura negra brasileira, me custava aceitar a ideia de que nenhum samba dele tivesse sido vetado. Para mim, era só questão de tempo até alguma prova aparecer. Nem historiadores ou familiares sabiam dizer — comenta Bocskay, que é músico e pesquisador da cultura da diáspora africana há cerca de oito anos e professor visitante de pós-graduação em Comunicação na UFPE. — A discussão sobre a censura na música popular brasileira existe há um tempo, mas não no samba. O silenciamento do negro é uma ferida aberta na sociedade brasileira. Eu me interessei pelo assunto porque muitas pessoas, e livros, ou escamoteiam as relações raciais entre brancos e negros ou as idealizam em nome de uma identidade nacional unificada da mestiçagem cordial, o que é uma farsa.
                                         
                                Arthur Poerner


13 comentários:

Joyce da Frota S. Poerner disse...

Orgulho define. Um pedacinho da história do meu pai, meu ídolo, meu amor ! Salve o Candeia e salve o samba !

Lula Basto disse...


ABRAÇOS AO QUERIDO AMIGO POERNER !!!

Abilio fernandes disse...

Parabéns Poerner, a admiração de sempre. Abraços.

Ana de Hollanda disse...

Adorei conhecer a história e descaminhos de “Morro do Sossego” até se desvendar os mistérios que faltavam

João Baptista disse...


Muito obrigado, Poerner. Excelente a matéria!

Um abraço,


Luiz Carlos de Souza disse...

Querido amigo Porner,
Li toda a matéria do Globo sobre a censura da sua música. O parecer é uma das costumeiras da época, você fez uma bela letra. Que bom que a Cristina Buarque gravou.
Grande abraço.
Obrigado pelo envio da sua bela mensagem.

José Guedes disse...

Beleza companheiro!

Isso é uma relíquia.
Parabéns!!!
Hasta siempre!

Roberto Greve disse...

Canalhas da Ditadura Militar sanguinária!

milton manhaes disse...

Arthur,

Muito legal!
Parabens por fazer parte de nossa historia.
Abraços.
Milton

Rosa Maria Araujo disse...

Adorei Porrner
Maravilhoso
Você vai ser nosso vizinho na Lapa?
Beijo grande
Rosa Maria

Berthold Zilly disse...

Boa noite, Arthur,
me alegro com o artigo, e tenho orgulho de ser o teu amigo, há tantos
anos.
Em agosto devo dar um pulo ao Rio, aí espero que a gente possa se ver
para colocar a conversa em dia.
Abração,
Berthold

Bernardo Costa disse...

Maravilha, meu amigo e padrinho Arthur Poerner!!!

Linda história. A cena no Morro do Sossego também foi retratada no livro "Nas profundas do inferno", de forma impressionante.

Vamos nos encontrar! Sugiro a Fiorentina mesmo. Avise-me quando for.

Grande abraço

Teresa Montero disse...

Querido Poerner,

Adorei ler a reportagem e conhecer essa parceria com Candeia.
Está anotado na minha pesquisa. Quando eu fizer mais uma edição de O Rio de Clarice abraça o Leme
vou mencionar esse episódio.

Grande abraço,