sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Sem Ariano Suassuna


      Com Ariano Suassuna, o Brasil acaba de perder um dos seus intelectuais mais completos, um mestre que enriqueceu a nossa cultura popular com base no seu profundo conhecimento do que o mundo produziu de melhor na literatura e na dramaturgia, como, por exemplo, dois dos seus autores favoritos, Dostoievski e Molière. O seu "Auto da compadecida" (1955) é a melhor comédia brasileira das que conheço, com destaque especial para a versão a que assisti na tevê, do Guel Arrais, com o João Grilo de Mateus Nachtergale, o Chicó de Selton Melo e a compadecida da grande Fernanda Montenegro. Sua morte no Recife, aos 87 anos, em consequência do AVC sofrido na véspera, foi um choque para mim, mas, passado o impacto, talvez amanhã, eu já possa falar de uma virtuosidade dele menos conhecida: a de contador de piadas.
                                                                                          Arthur Poerner

terça-feira, 29 de julho de 2014

O Brasil não é mais vassalo dos EUA


     Ao contrário da opinião d"O Globo", considero muito acertada a decisão do Itamaraty de convocar para consultas o embaixador em Tel Aviv. O Brasil não pode se omitir diante da gravidade do que ocorre na Faixa de Gaza, inclusive por ter presidido, em 1947, com o gaúcho Osvaldo Aranha, então embaixador na ONU, a seção da Assembleia Geral em que foi aprovada a partilha da Palestina histórica para a criação de dois Estados: um judaico, Israel, e o outro, árabe, a Palestina. Nos 67 anos desde então decorridos, Israel não fez outra coisa se não boicotar a criação do Estado palestino, isto é, o cumprimento da outra parte do acordo, sem jamais respeitar as resoluções que a comunidade internacional adotou a respeito, mediante votações na ONU. O desrespeito israelense se baseou, obviamente, no beneplácito dos EUA, mas a política externa do Brasil, felizmente, não é mais a da ditadura, que seguia a linha proclamada pelo chanceler Juraci Magalhães: "O que é bom para os EUA é bom para o Brasil." Em artigo publicado no Carnaval passado (só podia ser mesmo em dias de folia), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, numa tentativa de crítica à diplomacia da era Lula, ainda defendia o "estreitamento" das relações com Washington. Mas, estreitar ainda mais o quê ? A vassalagem ?
                                                                                              Arthur Poerner

Para ver os comentários na página do Facebook:
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sábado, 19 de julho de 2014

A despedida da Marlene

   
       A Copa acabou me desviando e impedindo que desse, nesta página, a devida atenção ao falecimento, no dia seguinte ao da sua inauguração, da Marlene, a cantora e atriz que foi, com Emilinha Borba, um dos grandes ícones da era de ouro do rádio no Brasil. Em compensação, pude encontrar duas fotos de 7 de novembro de 1994, dia em que a peguei em casa, em Copacabana, para que gravasse no Museu da Imagem e do Som, que eu presidia, um depoimento para a posteridade. No qual contou que, Victória na certidão, o seu nome artístico era uma homenagem à atriz alemã Marlene Dietrich; que, nascida em São Paulo, tinha iniciado a carreira no Rio, em 1940, como vocalista da orquestra do Cassino da Urca; que, a convite da colega francesa Edith Piaf, que a vira cantando no Copacabana Palace, chegara a ficar em cartaz por quatro meses e meio no Olympia de Paris; e que tinha mais de quatro mil músicas gravadas. Esfuziante, Marlene, então com 72 anos, contagiava de entusiasmo quem a ouvisse. Inesquecível !    
      Espero que, com a próxima inauguração da nova sede do MIS, na Av. Atlântica, não só depoimentos como este da Marlene, de uma série de artistas de sucesso na música, fundada pelo Ricardo Cravo Albin, mas também das que ali criei, como "Vozes da resistência" (à ditadura) e "Vozes do povo de santo", com destacadas personalidades do candomblé no estado, alcancem um público bem maior.


Com Marlene no MIS


Marlene, Rita e eu

domingo, 15 de junho de 2014

O dia em que fomos tchecos



     Não é exagero dizer que as copas mundiais de futebol pautam o meu passado, como pontos referenciais que me ajudam a datar vivências de outras esferas. Desde a primeira que vivi, em 1950, a cuja trágica partida final o meu pai achou prudente não me levar com ele, ante a previsão de 200 mil espectadores no Maracanã. De modo que o gol do Ghiggia na vitória uruguaia, aos 36 minutos do segundo tempo, me surpreenderia no meio de uma pelada de rua, de pés descalços, no Bairro de Fátima.
     Ainda mais dramática para mim, no entanto, foi a Copa de 1970, que me pegou preso no quartel da PE da Barão de Mesquita. Pouco antes da estreia do Brasil, contra a Tcheco-Eslováquia, fomos - uns 30 prisioneiros, entre os quais também estava o Gabeira - transferidos para o Dops, devidamente algemados e com as cabeleiras podadas. O que equivalia a uma ascensão do inferno ao céu, pois no Dops, naquele momento, não se torturava, e ainda podíamos receber visitas e jornais.
     Ali ficavam também os policiais acusados de crimes comuns, e o único que encontramos, sempre só de cuecas, mas de sapatos pretos reluzentes e meias brancas até o joelho, atendia pelo sugestivo nome de Miltom do Pó, que, desde o primeiro encontro, sem esconder a inveja que sentia pelo nosso status de presos políticos, passou a nos cumular de gentilezas. A maior delas foi instalar um aparelho de tevê de última geração na maior das celas coletivas, pois aquela seria a primeira copa televisionada.
     Daí a tristeza que acometeu o Miltom do Pó quando, todos já acomodados à espera do apito inicial, percebeu que tínhamos decidido, depois de extenuantes discussões, torcer contra o Brasil, convictos da utilização propagandística que a ditadura faria de uma conquista da Copa. E com inabalável firmeza ideológica nos manteríamos até que o "nosso" novo ponta, Ladislav Petras, ousou não só balançar a rede de Félix, como, ainda, se ajoelhar e fazer o sinal da cruz. Foi demais, um golpe profundo o suficiente para desmontar as estruturas da laboriosa decisão política. Tanto que a nossa kafkiana metamorfose se desfaria ainda no primeiro tempo.
     O pior foi ter que ouvir, já plenamente reintegrados à pátria de chuteiras e abraçados ao Miltom do Pó nas comemorações da vitória brasileira por 4 a 1, o diretor do Dops gritar da porta da cela:- Vencemos vocês, seus comunistas de merda !
     Foi o único jogo da brilhante campanha do tricampeonato a que pudemos assistir, o que, muitos anos depois, chocaria o Dadá Maravilha e o meu amigo aqui do Leme Jairzinho Furacão, quando lhes contei a história. Logo depois daquela partida, fomos novamente algemados e recambiados às celas da Tijuca, donde só foi possível acompanhar a evolução da gloriosa trajetória pelo clamor das ruas e, vez por outra, pela bendita tagarelice de um cabo-enfermeiro.
                                                         Arthur Poerner